Nesse último 13 de junho comemorou-se o aniversário de nascimento de Fernando Pessoa, um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa e mundial.

Sua obra que permaneceu maioritariamente inédita foi difundida e valorizada pelo grupo da Presença, após sua morte, a partir de 1943, Luís de Montalvor deu início à edição das obras completas de Fernando Pessoa, abrangendo os textos em poesia dos heterônimos e de Pessoa ortônimo, ou ele mesmo.

Os heterônimos são concebidos como individualidades distintas da do autor, este criou-lhes uma biografia e até um horóscopo próprios. Encontram-se ligados a alguns dos problemas centrais da sua obra: a unidade ou a pluralidade do eu, a sinceridade, a noção de realidade e a estranheza da existência. Traduzem, por assim dizer, a consciência da fragmentação do eu, reduzindo o eu «real» de Pessoa a um papel que não é maior que o de qualquer um dos seus heterônimos na existência literária do poeta. Assim cada heterônimo significava um novo autor com visão de mundo e características diferentes entre si, principalmente, na poesia temos três: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Tabacaria, talvez, seja a poesia mais significativa de Álvaro de Campos, nela podemos encontrar muitas das características presentes na obra desse heterônimo de Fernando Pessoa. No poema é predominante o niilismo, o sentimento de revolta, o inconformismo, a desumanização, também, um deprimente vazio, bem ao gosto de Shopenhauer, e a desilusão própria dos tempos pós-guerra e certo desleixo do português, como o próprio Pessoa afirmou em apontamentos.

O texto é um poema moderno, caracterizado assim pelos versos livres, versos que Ricardo Reis, outro heterônimo de Pessoa, em um apontamento no livro `O Eu profundo e outros eus` faz as seguintes considerações:

``O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada cm pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, com uma grande ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, um pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.``
Nos primeiros versos (Não sou nada/Nunca serei nada./Não posso querer ser nada), já se percebe a descrença presente em relação a si mesmo e ao longo do poema em relação a tudo. O Eu-poético sabe que só o que possui são sonhos. ( ... tenho em mim todos os sonhos do mundo.).

Sozinho no quarto o Eu-poético contempla a rua, motra-se uma oposição entre dentro (o quarto), subjetivo, a sua reflexão, e a rua (fora) a realidade objetiva, e percebe que lá há um mistério que ninguém vê (Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,/ Para uma rua inacessível a todos os pensamentos) apenas ele percebe, pois possui uma capacidade imaginativa muito grande (Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres) faz referência a morte como um desses mistérios citados no verso: (Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,) Outra atítese que se repete ao longo do poema é o tudo/nada (Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada).

O Eu-poético está refletindo e isso o deprime (Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade) e a falta do sonho, a lucidez, também o deixa deprimido e negativo (Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,).

A perplexidade de quem pensa, reflete, chega a conclusões, mas não as coloca em prática (Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu), assim se vê divido, a oposição entre a subjetividade (dentro) e a realidade (fora) na estrofe seguinte retorna ao texto (À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/ E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.).

Tudo que aprendeu ele procura esquecer, pois não lhe foram úteis (Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada./A aprendizagem que me deram), e recorre a natureza em busca de um sentido — talvez influenciado por Alberto Caeiro, seu mestre —, (Desci dela pela janela das traseiras da casa,/ Fui até o campo com grandes propósitos), mas essa busca é em vão, também no campo não vê sentido, para ele essa `vida natural´ é inútil, pois o Eu-poético é um homem da cidade, lúcido, angustiado e não inocente (Mas lá encontrei só ervas e árvores,/ E quando havia gente era igual à outra), então o Eu-poético volta a reflexão (Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?)

No verso seguinte o Eu-poético pensando sobre si retorna a oposição do sonho (desejo) e realidade reflexiva (Que sei eu de que serei, eu que não sei o que sou?/ Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa), o Eu-poético opõe a capacidade de sonhar a limitação do mundo real (E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!/(...) Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,/ E a história não marcará, quem sabe?, nem um,) o niilismo, a negatividade, volta, agora em relação ao futuro (Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.) novamente a antítese sonho/realidade aparece no poema, onde ele se compara a doidos, sonhadores, malucos, que tem conclusões a cerca de muitas coisas (Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!/ Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?).

Depois o Eu-poético percebe que os sonhos nada valem (Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas/ Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas, E quem sabe se realizáveis,) pois são limitados pelo mundo externo e real (Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?), pois o mundo não é para aqueles que apenas sonham, mas para aqueles que lutam (O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão), assim apesar de ter conquistado mais que Napoleão, amado mais que Cristo e filosofado mais que Kant, nada lhe adiantou pois tudo foi feito na imaginação (sonho) e não na realidade (Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez./ Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,/ Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.), este verso marca novamente a impotência perante a realidade (Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,/ Ainda que não more nela) os versos seguintes estão no pretérito marcando novamente o niilismo o Eu-poético que esperou sem sucesso e nada conseguiu, agora já não pode crer nele nem em nada (Serei sempre o que não nasceu para isso;/ Serei sempre só o que tinha qualidades;/ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta/ E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, / E ouviu a voz de Deus num poço tapado. / Crer em mim? Não, nem em nada.) com isso a realidade objetiva pesa sobre seu ser inflamado de sonho (Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente/ o seu sol a sua chuva, o vento que me acha o cabelo) o Eu-poético se vê desiludido (E o resto que venha, ou tiver que vir, ou não venha.), os versos seguintes são marcados pela incapacidade do Eu-poético perante o mundo real e externo que o torna marginalizado nesse mundo sem emoções e opaco: (Escravos cardíacos das estrelas,/ Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; / Mas acordámos e ele é opaco, / Levantámo-nos e ele é alheio,/ Saímos de casa e ele é a terra inteira,/ Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.)

A passagem mais bela do poema, talvez, é quando o Eu-poético inveja a inocência de uma criança que come chocolates, pois ele pensa, reflete muito e isso lhe é doloroso, é angustiante e traz infelicidade (Come chocolates, pequena; /Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates). Mas essa inveja que lhe causou um desejo de trocar de lugar com a menina logo dessipa-se, pois ao se colocar no lugar da criança, apenas com o ato de tirar a lâmina de papel de prata a realidade lhe vem a tona e percebe que o papel não é de prata, mas de estanho, acabando com o sonho de ser feliz e inocente como a menina, ou seja, jogando tudo fora o papel e os sonhos (Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,/ Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Nos versos seguintes o Eu-poético exibea novamente sua apatia, seu vazio interior, a negatividade e o niilismo em relação a si e ao futuro, pois o sonho foi vencido pela realidade (Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei/ A caligrafia rápida destes versos,/ Pórtico partido para o Impossível./ Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,/ Nobre ao menos no gesto largo com que atiro/ A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,) com isso ele recorre a figuras femininas inexistentes, pois o sonho alivia seu sofrimento (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,/ Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,/ Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,/ Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,/ Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,/ Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,) procura também algo na modernidade, sem saber o que procura, que lhe ajude na inspiração (Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê-,/ Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!), mas tudo é em vão, pois o vazio interno e a falta de esperança continua (Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco/ A mim mesmo e não encontro nada,).

O Eu-poético volta a observação do real (Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta./ Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,) nesse momento o Eu-poético se desumaniza, se difere das pessoas (Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,) a realidade impenetrável lhe deixa alheio, marginal ao mundo, novamente, (E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo,/ E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

A desilusão e o desejo de troca de lugar com outra pessoa voltam ao texto (Vivi, estudei, amei, e até cri,/ E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.) voltam também a antítese de tudo/nada e a identificação que no mundo não se deve sonhar apenas (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso).

O Eu-poético constata sua falha, nos versos seguintes, (Fiz de mim o que não soube,/E o podia de mim não o fiz./ O dominó que vesti era errado) e a perda da identidade pois ela não era real, era imaginada (Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./Quando quis tirar a máscara/ Estava pegada à cara), vivendo sob uma personalidade irreal, ele perdeu tempo (Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido.) sem personalidade não pode fazer parte do mundo, neste momento a palavra ´máscara´, até então, usada como metáfora para personalidade, agora passa a contextualizar a metáfora do mundo como um teatro, sem fazer parte do mundo ele não pode subir ao palco, devendo ficar a margem (Deitei fora a máscara e dormi no vestiário).

Mas o Eu-poético após constatar suas falhas, percebe-se sem personalidade, vê uma hipótese de redenção na escrita, ele encontra utilidade em toda sua reflexão, assim com a escrita ele pode provar, a si mesmo, que é um ser elevado (E vou escrever esta história para provar que sou sublime.), mas ao olhar a Tabacaria, representação da realidade, essa euforia logo passa, voltando o niilismo, a apatia, a desilusão e o sentimento de exclusão (Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,/ E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,/ Calcando ao pés a consciência de estar existindo,/ Como um tapete em que um bêbado tropeça/ Ou um capacho que os ciganos roubaram e não vale nada,).

Ao olhar o dono da Tabacaria que representa o homem comum sente-se desconfortávelm (Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta./ Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada/ E com o desconforto da alma mal-entendendo.) depois gradativamente volta o sentimento de inutilidade da Tabacaria, de seus versos, do mundo e de tudo, é significativa o modo que aparece essa gradação, é como se a inutilidade das vidas do Eu-poético e do dono da tabacaria atingisse a rua, o país, o planeta até atingir todo o universo (Ele morrerá e eu morrerei./ Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos./ A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também./ Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,/ E a língua em que foram escritos os versos./ Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu./ Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente/ Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,/ Sempre uma coisa defronte da outra,/ Sempre uma coisa tão inútil como a outra,).

O anticlímax dá-se nos versos seguintes com a visão de um homem que entra na Tabacaria, provavelmente um cliente, a realidade volta ao Eu-poético (Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),/ E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.), depois o Eu-poético é tomado por uma euforia e vai tentar escrever (Semiergo-me enérgico, convencido, humano,/ E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.), após essa euforia passageira o Eu-poético se refugia na evasão, sem pensar, sem refletir, para apenas saborear o cigarro (Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los/ E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./(...) E continuo fumando./ Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.)

Com o fim do momento evasivo e de solidão o Eu-poético volta a refletir, mas agora emotivamente, cogitando a felicidade na vida simples (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz.) O cliente sai da tabacaria o Eu-poético o reconhece, é um homem comum, sem muitas inquietações e reflexões (O homem saiu da tabacaria (..)/ Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.) o poema chega ao fim quando o Eu-poético interage, se comunica, com o homem — chamado Esteves —, nome interessante e que combina com o sentimento de todo o poema, pois se trata do verbo estar no pretérito acompanhado do sintagma ‘sem metafísica’, trazendo uma ambiguidade simbólica a esse homem comum: esteves sem metafísca, fazendo assim a aproximação do subjetivo (Eu-poético) e objetivo (homem e o dono da Tabacaria),

Nos últimos versos (Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me./ Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo/ Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.) o Eu-póetico volta-se desiludido e sem esperança para a realidade, enquanto o dono da Tabacaria alheio a tudo apenas sorri.

Fabiano Fernandes Garcez - São Paulo/SP


BIBLIOGRAFIA


Pessoa, Fernando . O eu profundo e os outros eus. 16º Edição, Nova Fronteira

Pais, Amélia Pinto. Para compreender Fernando Pessoa. Porto, Areal Editores

Coelho, Vânia Cardoso. Apostila de Literatura Portuguesa – Modernismo.

Site: www.geocites.com/Paris/metro/7719

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