Um trago sozinho à tarde

Por Fabiano Fernandes Garcez | 2/10/2010 02:49:00 PM em , |



Por Fabiano Fernandes Garcez

                   Ernest Fischer, em A necessidade da arte, afirma:

                         Em todo poeta existe certa nostalgia de uma linguagem “mágica”, original.


                   Em O Bebedor de Auroras, mais novo trabalho do premiadíssimo poeta Tonho França nos brinda com magia, lírica íntima e sintaxe peculiar para resgatar do mundo contemporâneo, a cada dia repleto de surpresas, armadilhas e contradições, a humanidade perdida.
             A experiência individual do eu-poético, traz ao livro um tom de saudade e de desencanto, talvez contaminado pelo sentimento de desencaixe, como se pode notar em: 

            aprendi a ver através das margaridas, mas não entendo mais o
                                                                       [olhar dos homens
                                                  (...)
                                                                                  (Tardes Artificiais)
ou:
                                               A toda hora
                                             A todo momento
                                        Estou fora ou dentro?
                                                                                  (Muros)
             A pena de Tonho corre sobre o fazer poético, em inúmeros poemas se encontram as palavras: versos, poesia e poeta, isto em consequência a reclusão no presente de eu-poético fragilizado pelas incertezas do futuro e as recordações do passado:

            Meus olhos, embora cansados,
            Pressentem o que não podem ver
            Aprenderam com o meu silêncio
            – rituais e rotinas de solidão –
            Meus instintos guardam a memória dos amores
            E de tudo o que me é caro e que meu coração...
            Já não suportaria.

            E de nada me adiantam, agora, lembranças,
            Penitências, alegrias ou arrependimentos
            ­Estou recluso nos versos –
            E nas minhas dores, culpas
            Nos enfrentamentos em calmos e intermináveis silêncios
            Abertos, vulneráveis, extremamente íntimos
            E despidos de profecias, santos e defesas,

            Num encontro definitivo, conclusivo, coeso

            Do qual nem poeta, nem poesia, saem ilesos.
(Autorretrato (Diálogo do último dia))
                   O sotaque poético de Tonho França permanece intacto, maneira singular de construção semântica,  que aproveita fragmentos de versos anteriores para dar aos posteriores outras significações:

            As ladeiras de pedra
            Os homens a seguir o destino em procissão
            As ladeiras de pedra e os homens a segui
            As ladeiras de pedra tentam a remissão:
            Os homens de pedra a seguir vão,
            homens de pedra a seguir
            os homens, em vão.
                                               (...)
                                                                                  (Procissão)
               Na construção sintática, menos recorrente nesta obra é verdade, Tonho França também é mestre, trabalha duas orações coordenadas, porém com o segundo elemento do paralelismo inusitado:

            Meus olhos guardam o segredo da morte
            Suas mãos enrijecidas em pétalas de mármore-rosa
            Colhiam maças e notas musicais.
                                                                                  (Canto III)
                  Mares... destoa do resto do livro, o uso constante da mesma rima dá ao poema um ritmo arcaico, lembrando muito a poesia do século XIII e XIX:

            Os barcos deixam o cais,
            Aventuram-se e deixam o cais,
            Nas ondas inseguras, deixam o cais,
            Levando as desventuras, deixam o cais,
            Nas noites tão escuras, deixam o cais,
            Deslizam entre espumas e corais,
                                               (...)
                   Ainda na linguagem que o poeta utiliza para suas auroras o destaque fica por conta de:


Metrópole

Pivete no semáforo
(vida?)
Vende balas
(perdidas)

                  o uso dos parênteses dá ao poema outras possibilidades de interpretação, pode-se ler só os termos que estão fora deles, apenas os que estão dentro, ou ainda embaralhando-os.
                 Em Vida vista pela janela (cenas de um tempo sem sentido), um dos melhores poemas do livro, Tonho nos ensina:

            É preciso nos lavar de nós mesmos  (..)

                   Em uma sociedade que é regida pelo olhar mercadológico, o olhar sensorial do eu-poético recai sobre os homens desumanizados, então resta, apenas, concordar com as palavras do poeta:

            Já aprendi a sobreviver nas esquinas definitivas
            E sinto como é pesada a franqueza
            Escrevo abaixo da “linha da pobreza”
            Dentro dos olhos e com muita dor
            Mas não me iludo, não me engano
            Meus versos são pelos seres humanos
            A poesia é para sermos humanos
                                               (...)
                                                                       (Dia a dia)

             A voz auscultada das páginas traz a entonação do entardecer, apesar do título constar como auroras, a palavra tarde é recorrente em muitos de seus versos, assim como ecos de um homem, em uma metrópole, solitário à espera de alguém para, quem sabe, um trago de poesia.
                O Bebedor de Auroras é um bálsamo contra a banalização do mundo contemporâneo que está cada vez mais e mais dezumano e alienante. 


1 comentários:

  1. Pedro Du Bois on 12 de fevereiro de 2010 às 17:22

    Caro Tonho, como comprar? gostei do que li. Abraços, Pedro.

     


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