Tese e Antíteses em A Cidade e as Serras

Por Fabiano Fernandes Garcez | 4/26/2010 09:01:00 PM em , |

Publicado em 1901, um ano após a morte de Eça de Queirós, o romance A Cidade e as Serras foi desenvolvido a partir da idéia central do conto Civilização, datado de 1892. Dois personagens centrais, os amigos de infância: Jacinto de Tormes, o protagonista, e José Fernandes, o narrador.
A obra pode ser dividida em duas partes. Após uma rápida passada sobre a história da família do protagonista, retratando, principalmente, os avós e o motivo da saída da família de Portugal para a França, temos a primeira parte que se passa em Paris, na mansão nos Campos Elíseos 202, Zé Fernandes conta a vida de Jacinto, o “Príncipe da Grã-Ventura”, um homem extremamente rico, que, embora tenha nascido em Paris, tem suas rendas dos campos de Portugal, onde a família possui plantações e produção de vinho, cortiça e oliveira.
Positivista, Jacinto, defendia a idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. A civilização é cidade grande, é máquina e progresso que é representado na obra pelos diversos aparelhos que estão na mansão, como por exemplo: o telex, o telefone, o teatrofone, o conferenciofone, o marcador de páginas, a pena elétrica e etc.
Em fevereiro de 1880, José Fernandes foi chamado pelo tio e parte para Guiães, Portugal, voltando apenas sete anos depois, porém o entusiasmo e a animação de antes deixam Jacinto, seus aparelhos lhe deixam na mão quando são necessários. Ao perguntar ao seu empregado, Grillo, Zé Fernandes recebe a resposta: “Sua excelência sofre de “fartura”.
Jacinto cansado da vida resolve ir a Tormes, Portugal, para reconstruir a capela e enterrar os ossos de seus avós. Porém no caminho para lá acaba desencontrando-se com os criados e suas bagagens. Chegando lá, segunda parte da obra, apenas com a roupa do corpo, Jacinto e Zé Fernandes verificam que sua casa ainda não está pronta, bem como não chegaram seus pertences enviados meses antes, porém é bem recebido, come bem e chega até reparar o céu e pela primeira vez em muito tempo dorme uma noite inteira.
Zé Fernandes volta para sua propriedade em Guiães, quando o encontra ele está renovado e adorando a vida do simples do campo.
Ao conhecer as reais circunstâncias de pobreza que seus empregados vivem, Jacinto resolve construir casa novas e passa a ser chamado como “o pai dos pobres”.
Jacinto se casa com Joaninha, prima de José Fernandes, e tem dois filhos. Após cinco anos ZéFernandes resolve voltar a Paris e a vê de um modo diferente a pressa, a falsidade, a degeneração do espírito da cidade e das pessoas que nela vivem.
Enfim Zé Fernandes volta a Portugal onde é esperado por Joaninha, Jacinto e os filhos

A tese:

Tédio da civilização (cidade) X Os encantos da natureza (Serras)

Nos campos o vilão sem susto passa
inquieto na corte o nobre mora;
o que é ser infeliz aquele ignora,
este encontra nas pompas a desgraça;

aquele canta e ri, não se embaraça
com essas coisas vãs que o mundo adora;
este (oh cega ambição!) mil vezes chora,
porque não acha bem que o satisfaça;

aquele dorme em paz no chão deitado,
este no ebúrneo leito precioso nutre,
exaspera velador cuidado,

triste, sai do palácio majestoso.
Se hás de ser cortesão mas desgraçado,
antes ser camponês e venturoso.
Bocage




O crítico Jacinto do Prado Coelho, ao admitir que a atitude que ditou A Cidade e as Serras seria aquela que o escritor defendia na sua última fase, e que ela corresponderia: A Cidade e as Serras, para fazer efetivamente uma apologia a um ideal de justiça, não se deveria transformar num panfleto contra a Máquina, porque o mal não estaria na máquina, mas sim na mentalidade e na organização social.

Enganados pela ciência, embrulhados nas subtilezas balofas da economia política, maravilhados como crianças pelas habilidades da mecânica, durante setenta anos construímos freneticamente vapores, caminhos de ferro, máquinas, fábricas, telégrafos, uma imensa ferramentagem, imaginando que por ela realizaríamos a felicidade definitiva dos homens e mal antevendo que aos nossos pés e por motivo mesmo dessa nova civilização utilitária se estava criando uma massa imensa de miséria humana, e que, com cada pedaço de ferro que fundíamos e capitalizávamos, íamos criar mais um pobre!

Eça de Queirós em A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 23 de Abril de 1895.

1º Antítese :

Guerra da Cal, para quem a obra apresentava a ironização amorosa dos dois pendores contraditórios da alma do escritor.
Um cosmopolita, outro ruralista
Símbolos de duas facetas fundamentais do espírito lusitano: bucolismo e extravagância.
Maria Lúcia Lepecki comenta:
Se José Fernandes não nos inibe de desconfiarmos da conversão de Jacinto, se o próprio narrador não é alheio a tal desconfiança, é porque faz, simultaneamente, duas leituras da sua personagem. Uma delas mostra, em quantidade textual maior, a correspondência regresso físico ao campo - conversão e revisão parcial de valores pessoais e de formas de estar no mundo. A outra leitura, que o narrador escreve por indícios, sugestões, por rápidos comentários irônicos cria correspondência diversa: regresso ao campo - não modificação do protagonista.

(...) Mas, certa manhã, em Guiães, acordei aos berros da tia Vicência! Um homem chegara, misterioso, com outros homens, trazendo arame, para instalar na nossa casa o novo invento. Sosseguei a tia Vicência, jurando que essa máquina nem fazia barulho, nem trazia doenças, nem atraía as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu, encolhendo os ombros:
-Que queres? Em Guiães está o boticário, está o carniceiro... E, depois, estás tu!
Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro dum mês temos a pobre Joana a apertar o vestido pôr meio duma máquina! Pois não! o Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele fora o Príncipe sem Principado. (...)

João Medina, em Eça Político, conclui, após concessões feitas à complexidade deste romance, que a obra, através do seu protagonista Jacinto, representa, por um lado, a reconciliação do próprio Eça com uma pátria que perdera em infindáveis viagens desde 1872 e, por outro, a desilusão perante uma França cada vez mais intolerante.

2º Antítese:

Seguindo o pensamento do crítico Frank Sousa, a Mulher em A Cidade e as Serras aparece julgada de forma dual, ora no seu lado de perversão, ora no seu lado de redenção.
Estabeleceu-se uma nítida oposição entre a doença, o vício, a ruína e a decadência da mulher parisiense:

-Ó Jacinto! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve, te telefona, te telegrafa, te...?
-Diana... Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!
-Tua?
-Minha, minha... Não! tenho um bocado.
E como eu lamentava que o meu Príncipe, senhor tão rico e de tão fino orgulho, pôr economia duma gamela própria chafurdasse com outros numa gamela pública – Jacinto levantou os ombros, com um camarão espetado no garfo:
-Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa ter cortesãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris, nesta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os seus diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolência, é necessário que se agremiem umas poucas de fortunas, se forme um sindicato! Somos uns sete, no Clube. Eu pago um bocado... Mas meramente pôr Civismo, para dotar a Cidade com uma cocotte monumental. De resto não chafurdo. Pobre Diana!... dos ombros para baixo nem sei se tem a pele cor de neve ou cor de limão.
Arregalei um olho divertido:
-Dos ombros para baixo?... E para cima?
-Ó! para cima tem pó de arroz!... Mas é uma seca! Sempre bilhetes, sempre telefones, sempre telegramas. E três mil francos pôr mês, além das flores... Uma maçada!
E as duas rugas do meu Príncipe, aos lados do seu afilado nariz, curvado sobre a salada, eram como dois vales muito tristes, ao entardecer.


E a saúde, o prazer, a vida e a autenticidade da mulher das serras:

-Como está o tio Adrião?
Surdo, o excelente Manuel sorriu, deleitado:
-E então vossa excelência, bem? A Srª D. Joaninha ainda agora andava no laranjal com o pequeno da Josefa.
Seguimos pôr ruazinhas bem areadas, orladas de alfazema e buxo alto, enquanto eu contava ao meu Príncipe que aquele pequenito da Josefa era um afilhadinho da prima Joana, e agora o seu encanto e o seu cuidado todo.
-Esta minha santa prima, apesar de solteira, tem aí pela freguesia uma verdadeira filharada. E não é só dar-lhes roupas e presentes, e ajudar as mães. Mas até os lava, e os penteia, e lhes trata as tosses. Nunca a encontro sem alguma criancita ao colo... Agora anda na paixão deste Josezinho.


Sobre Joaninha Maria Lúcia Lepecki diz:
Quando, pela primeira vez surge diante do senhor de Tormes, ela é já a imagem da maternidade.
Porém, diz Zé Fernandes, sobre as mulheres das Serras:

E esta Tormes, Jacinto, esta tua reconciliação com a Natureza, e o renunciamento às mentiras da Civilização é uma linda história... Mas, caramba, faltam mulheres!
Ele concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:
-Com efeito, há aqui falta de mulher, com M grande. Mas essas senhoras aí das casas dos arredores... Não sei, mas estou pensando que se devem parecer com legumes. Sãs, nutritivas, excelentes para a panela – mas, enfim, legumes. As mulheres que os poetas comparam às flores são sempre as mulheres das cortes, das Capitais, às quais, invariavelmente, desde Hesíodo e Horácio, se rendem os poetas... e evidentemente não há perfume, nem graça, nem elegância, nem requinte, numa cenoura ou numa couve... Não devem ser interessantes as senhoras da minha serra.
-Eu te digo... A tua vizinha mais chegada, a filha do d. Teotônio, com efeito, salvo o respeito que se deve à casa ilustre dos Barbedos, é um mostrengo! A irmã dos Albergarias, da Quinta da Loja, também não tentaria nem mesmo o precisado santo Antão. Sobretudo se se despisse, porque é um espinafre infernal! Essa realmente é legume, e não dos nutritivos.
-Tu o disseste: espinafre!
-Temos também a D. Beatriz Veloso... Essa é bonita... Mas, menino, que horrivelmente bem falante! Fala como as heroínas do Camilo. Tu nunca leste o Camilo... e depois, um tom de voz que te não sei descrever, o tom com que se fala em D. Maria... Enfim, um horror! E perguntas pavorosas. “V. Exª, Sr. Doutor, não se delicia com Lamartine?” Já me disse esta, a indecente!
-E tu?
-Eu! Arregalei os olhos... “Ó Lamartine!” Mas, coitada, é uma excelente rapariga! Agora, pôr outro lado, temos as Rojões, as filhas do João Rojão, duas flores, muito frescas, muito alegres, com um cheiro e um brilho a sadio, e muito simples... A tia Vicência morre pôr elas. Depois há a mulher do Dr. Alípio, que é uma beleza. Ó! uma criatura esplêndida! Mas, enfim, é a mulher do Dr. Alípio, e tu renunciaste aos deveres da Civilização... Além disso, mulher muito séria, toda absorvida nos seus dois pequenos, que parecem dois anjinhos de Murillo... E quem mais? Já agora, quero completar a lista do pessoal feminino. Temos a Melo Rebelo, de Sandofim, muito engraçada, com cabelo lindo... Borda na perfeição, faz doces como uma freira do antigo regime... Havia também uma Júlia Lobo, muito linda, mas morreu... Agora não me lembro de mais. Mas falta a flor da Serra, que é a minha prima Joaninha, da Flor da Malva! Essa é uma perfeição de rapariga (...)

E o que diz Jacinto:

-Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha! Pulei, imensamente divertido:
-Ó Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas? E as sódicas?...
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma bela moça trazia num prato. Eu admirei sobretudo a moça... Que olhos, dum negro tão líquido e sério! No andar, no quebrar da cinta, que harmonia e que graça de Ninfa latina!
E apenas pela porta desaparecera a esplêndida aparição:
-Ó Jacinto, eu daqui a um instante também quero água! E se compete a esta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma coisa!... Que olhos, que corpo... Caramba, menino! Eis a poesia, toda viva, da serra...
O meu Príncipe sorria, com sinceridade:
-Não! não nos iludamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcádia. É uma bela moça, mas uma bruta... Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido todavia não parece contente, porque a desanca. Também é um belo bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo... são porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um repouso.


Eça de Queirós, em As Rosas, in Notas Contemporâneas, associa as rosas tanto à figura da Virgem Maria como a Vênus. Por isso, tal como bem notou Frank Sousa:
A Joaninha do romance, mais do que a do conto Civilização, assume uma postura simbólica, aparecendo [...], como uma espécie de Virgem Maria por um lado, e como uma figura também sensual, ou seja, uma espécie de Vénus rústica, por outro.

(... ) Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus cabelos – lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes laços azuis. (...)


A propósito ainda de Joaninha, de quem os estudiosos René Costa e Peggy Sharpe-Valadares salientaram a sua relação com a Virgem Maria, Frank Sousa afirma que, concentrando ela em si os ideais de santa, de mãe e de mulher bela e sã e Jacinto, recebendo o título de Pai dos Pobres e bom senhor.
O casamento de Jacinto e Joaninha é, assim, uma união cristã entre dois seres belos, jovens e virtuosos, além de abastados. Mas o ideal pagão de felicidade no campo (o ideal clássico da aurea mediocritas), as repetidas referências aos autores da Antiguidade grega e latina e aos arquétipos de vida que nele se encontram, parecem indicar que Eça tentou fundir a tradição cristã com a tradição clássica numa coexistência harmoniosa.
Se Joaninha sintetiza o lado positivo e redentor da Mulher em A Cidade e as Serras, o lado da perversão feminina também não está ausente, só que associado à Urbe e aos seus vícios, os quais M.me d'Oriol e Colombe (nesta até é apontado o lesbianismo) bem tipificam.

-Madame Colombe?
A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:
-Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra com outra porca!


3º Antítese:

Devemos constatar que a presença clássica em Eça de Queirós é uma evidência, e isto tanto no que diz respeito aos clássicos da Antiguidade greco-latina, quer aos clássicos renascentistas, quer ainda a escritores de outras épocas, mas cujo estilo dimanava dos cânones do Classicismo.
As referências que aparecem em A Cidade e as Serras a autores gregos, como por exemplo, a Heródoto, a Platão, a Plutarco, a Eurípides, a Sófocles, para só citar alguns:
De todos os autores greco-latinos, é com os poetas Virgílio e Homero que A Cidade e as Serras estabelece um dialogismo mais preponderante.
A primeira leitura de Jacinto nas serras é precisamente a do livro I das Bucólicas, tal como o passo em latim, apropriado às circunstâncias de uma manhã de esplendor em Tormes e à personagem Jacinto, bem sugere:

Fortunate Jacinthe! Hic inter arva nota
Et fontes sacros, captabis opacum...


Nestes versos, se substituirmos o lexema Jacinthe por senex e arva por flumina, aparece-nos o texto original da Bucólica I
Cuja tradução em português é: Afortunado velho... entre os rios conhecidos e as sagradas fontes, procurarás a fresca sombra.
Já anteriormente, porém, se alude a Virgílio, num diálogo interessantíssimo entre o protagonista e o narrador Zé Fernandes, onde o vinho de Tormes e a doçura da vida rural são elogiadas:

(...) “É divino!” Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:
-Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras?
Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural:
-Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rômulo e Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo!
E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverência. (...)


O fato de o protagonista de A Cidade e as Serras ler o poeta Virgílio no espaço rural de Tormes pode funcionar, sem dúvida, como um elemento para os que defendem que o romance exalta os valores nacionais, sobretudo na sua vertente de apologia à aurea mediocritas. Na verdade, no gozo dos doces ócios do campo (para usar uma expressão de Horácio, que aliás é referido no romance), era mais do que propício ler Virgílio, o bucolista por excelência da Literatura Latina, e que é citado quase por toda a literatura pastoril.
Maria Lúcia Lepecki entende que a leitura de Virgílio por Jacinto nas serras corrobora o seu estado de alienação. É que ele deforma a funcionalidade do objeto estético, porque para o senhor de Tormes as Bucólicas e as Geórgicas de Virgílio adquirem o valor informativo preponderante que ele deveria encontrar nos jornais de agricultura, onde a técnica para o cultivo do campo lhe seria verdadeiramente fornecida.
Virgílio desempenha nas serras a mesma fonte de autoridade que, na fase pessimista de Paris, desempenhavam as leituras auto-justificativas de Schopenhauer e do Ecclesiates.
É pertinente salientar ainda que Jacinto deixa de ler nas serras o científico e o filosófico, que lia no 202, e passa a ler unicamente o ficcional. Por isso, afirma Maria Lúcia na Ambiguidade que um dos constituintes reacionários da obra se prende com o fato de em Tormes Jacinto não ler um só texto contemporâneo. Nem sequer com a obra científica de Plínio, que encaixotara em Paris para ser lido em Tormes, poderia a personagem manter um diálogo atualizado relativamente ao objeto do conhecimento, que era o campo português do séc. XIX. Então, a volta à Serra é a volta ao passado.
Na obra, há, ainda, alusões ao Gargantua de Rabelais e ao D. Quixote , a que, aliás, o próprio Eça tão bem se referira em 1891 em A Decadência do Riso, Eça de Queirós compara o final do século XIX à Idade Média, na medida em que nestes dois momentos da História o homem se deixou dominar por teorias e por sistemas de pensamento, de tal forma opressivos, que lhe suprimiram o riso - aquilo que é tão próprio do homem. Na Idade Média a causa terá residido no poder absoluto da Igreja, simbolicamente expresso pela leva queirosiana como o morcego teocrático; no século XIX foi devido ao fanatismo com que se defenderam as novas teorias do homem e da ciência. Assim se compreende que Eça termine esta "nota contemporânea" da seguinte maneira:
O infeliz está votado ao bocejar infinito. E tem por única consolação que os jornais lhe chamem e que ele se chame a si próprio - o Grande Civilizado.
Estas palavras induzem a uma crítica vincada da parte do escritor, como pensa Orlando Grossegesse, ao Pessimismo (Schopenhauer) e que estava em moda na época, e que se refletem na caracterização de Jacinto em A Cidade e as Serras.
Depois de Jacinto ter dito a Zé Fernandes que tinha dormido naquele dia deliciosamente como um justo o narrador Zé Fernandes informa ao leitor que o seu ditoso amigo findava o D. Quixote e ele ainda lhe escutara as derradeiras risadas com as coisas deliciosas, e decerto profundas, que o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro.
A leitura de D. Quixote a que Jacinto procede, depois de ter lido as Bucólicas de Virgílio (e antes de começar a ler a Odisseia de Homero) simboliza a recuperação da sua capacidade de rir, ao contrário da postura séria que tomava em Paris, fruto das suas leituras positivistas e pessimistas:

(...) Em breve, porém, me fez pular, escancarar as pálpebras moles, uma rija, larga, sadia e genuína risada. Era Jacinto estirado numa cadeira, que lia o D. Quixote... Oh bem-aventurado Príncipe! Conservara ele o agudo poder de arrancar teorias a uma espiga de milho ainda verde, e por uma clemência de Deus, que fizera reflorir o tronco seco, recuperara o dom divino de rir com as facécias de Sancho! (...)


4º Atítese:
António Sérgio, que, em vez da oposição Civilização-Natureza, afirma que a verdadeira antítese em que se esteia o livro é a antítese Ociocidade-Ocupação. E a prova disto é que chegado à Serra começou logo o Jacinto a ser ativo - e daí proveio o desvanecer-se o tédio, e daí a redenção da personagem.
Alexandre Pinheiro Torres apresenta uma interpretação muito semelhante à de António Sérgio, porque considera a cidade um lugar desagradável, onde é impossível praticar uma vida de plenitude humana; o campo, em contrapartida, é apresentado como sendo o lugar propício à renovação e à conquista de felicidade.

(... )quando me despertou um berro amigo! Era o meu Príncipe. E muito decididamente, depois de me soltar do seu rijo abraço, o comparei a uma planta estiolada, emurchecida na escuridão, entre tapetes e sedas, que, levada para o vento e o sol, profusamente regada, reverdece, desabrocha e honra a Natureza! Jacinto já não corcovava. Sobre a sua arrefecida palidez de supercivilizado, o ar montesino, ou vida mais verdadeira, espalhara um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na Cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na beleza das coisas. Até o bigode se lhe encrespara. E já não deslizava a mão desencantada sobre a face – mas batia com ela triunfalmente na coxa. Que sei? Era Jacinto novíssimo.
E quase me assustava, pôr eu Ter de aprender e penetrar, neste novo Príncipe, os modos e as idéias novas.
-Caramba, Jacinto, mas então...?
Ele encolheu jovialmente os ombros realargados. E só me soube contar, trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar numa dorna, e de enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como desanuviado, desenvencilhado! Almoçara uma pratada de ovos com chouriço, sublime. Passeara pôr toda aquela magnificência da serra com pensamentos ligeiros de liberdade e de paz. Mandara ao Porto comprar uma cama, uns cabides... E ali estava...
(...)
-Ando aí pelas terras desde o romper de alva! Pesquei já hoje quatro trutas magníficas... Lá embaixo, no Naves, um riachote que se atira pelo vale de Seranda... temos logo ao jantar essas trutas!
Mas eu, ávido pela história daquela ressurreição:
-Então, não estiveste em Lisboa?... Eu telegrafei...
-Qual telégrafo! Qual Lisboa! Estive lá em cima, ao pé da fonte da Lira, à sombra duma grande árvore, sub tegmine não sei quê, a ler esse adorável Virgílio... e também a arranjar o meu palácio! Que te parece, Zé Fernandes? Em três semanas, tudo soalhado, envidraçado, caiado, encadeirado!... Trabalhou a freguesia inteira! Até eu pintei, com uma imensa brocha. Viste o comedouro?


Frank Sousa opina que:
Ao optar por personagens de índole tão diferente (citadina e francesa, com Jacinto; serrana e portuguesa, com Zé Fernandes), Eça põe em cena duas vozes, dois pontos de vista ideológicos que constantemente e de modos diversos dialogam entre si. É desta forma que o autor de A Cidade e as Serras problematiza a maneira de viver e as próprias soluções finais, que perante a vida adota (ou encontra) cada uma destas personagens.
Zé Fernandes é um pequeno proprietário, opondo-se assim implicitamente a Jacinto, o aristocrata rural que descende de fato de uma família com raízes remotas na Idade Média portuguesa. José Fernandes é o narrador deste livro, ele está, portanto, de certo modo, em cena durante todo ele. De sua informação nós sabemos assim que vive ou sempre viveu com os tios Vicência e Afonso Fernandes - sintomaticamente morto, aliás, logo no começo do livro.
Ora este Zé Fernandes é como se não tivesse tido pais. Porque nem uma única vez se refere à mãe e uma só vez faz uma referência ocasional a um “daguerreótipo do papá” (cap. VIII). Nada mais. Como se a sua filiação se não determinasse nos pais, mas justamente nos tios...
5º Antítese:

Um personagem típico da atmosfera decadentista é o dândi. Charles Baudelaire diz:
O homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra preocupação senão correr ao encalço da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido desde a juventude; aquele, enfim, cuja única profissão é a elegância, sempre exibirá, em todos os tempos, uma fisionomia distinta, completamente à parte. (BAUDELAIRE, 1996. p. 51)
Oriundo da aristocracia, “(...) o dândi não aspira ao dinheiro como a uma coisa essencial; um crédito ilimitado poderia lhe bastar: ele deixaria essa grosseira paixão aos vulgares mortais.” (Idem, ibidem) O dândi é politicamente anti-burguês, não porque quer acabar com a burguesia, mas porque é aristocrático.

(...) - Ó Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já aí um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São úteis?
Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os sublimava. -Providenciais, meu filho, absolutamente providenciais, pela simplificação que dão ao trabalho! Assim... e apontou. Este arrancava as penas velhas, o outro numerava rapidamente as ´páginas dum manuscrito; aqueloutro, além, raspava emendas... E ainda os havia para colar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...
- Mas com efeito, acrescentou, é uma seca... Com as molas, com os bicos, às vezes magoam, ferem... Já me sucedeu inutilizar cartas pôr as Ter sujado com dedadas de sangue. É uma maçada! (...)


O flâneur é ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e descritiva, levando a vida para cada lugar que vê. O flâneur descrever as cidades, as ruas, os becos, o externo. Desvincula-se do particular, recrimina o privado, de forma a ver a rua como lar, refúgio e abrigo. Este sentimento flaneuriano reflete a necessidade de segurança do indivíduo, a necessidade de identificação dele para com a sociedade. A rua é seu lar, seu mundo. Ali nada é estranho ou prejudicial. Na rua se sente confortável e protegido. O flâneur do século XIX representou a angústia da Revolução Industrial.
Mesmo que não habitante constante da rua, o indivíduo flâneur utiliza sua janela (caminho livre para o externo) para fazer sua observação e seu retrato. O flâneur é um fotógrafo. Porém além de imagens, ele registra idéias, sentimentos e atitudes. Descreve tudo com perfeição e carinho. Ama o mundo exterior e dele faz seu ideal profissional e emocional.

Arrastei então pôr Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas todo o luxo, que já me enfartara havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarelos, onde, de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro morno de alcova, e de pós-de-arroz, entre linhas trabalhadas com efeminado arrebique, como rendas de camisas. (...) E recolhia enjoado com tanto relento de alcova, vagamente dispéptico com os molhos de pomada do jantar, e sobretudo descontente comigo, pôr me não divertir, não compreender a Cidade, e errar através dela e da sua Civilização Superior, com a reserva ridícula dum Censor, dum Catão austero. Ó senhores! – pensava – pois eu não me divertirei nesta deliciosa cidade? Entrará comigo o bolor da velhice?



Referências bibliográficas:

QUEIROZ, Eça de, A Cidade e as Serras, Lisboa, Livros do Brasil, s/d.
COELHO, Jacinto do Prado - "A tese de 'A Cidade e as Serras'" in A letra e o leitor, 2ª ed., Lisboa Moraes Editores, 1977, pp. 169-174.
LEPECKI, Maria Lúcia - " O sentido de A Cidade e as Serras" in Eça na ambiguidade, Fundão, "Jornal do Fundão" Editora, 1974, pp.
SOUSA, Frank S. - "Da errância como atitude estética em Eça de Queiroz: do conto A Perfeição aA Cidade e as Serras ", Revista da Faculdade de Letras, 5ª série, 19/20, Lisboa, 1995-1996, pp. 75-88.
SOUSA, Frank S. - O segredo de Eça. Ideologia e ambiguidade em "A Cidade e as Serras", Lisboa, Cosmos, 1996
GUERRA DA CAL, Ernesto, Língua e Estilo de Eça de Queiroz, Coimbra, Almedina, 1981.
MEDINA, João, Eça Político, Lisboa, Seara Nova, 1974.
GROSSEGESSE, Orlando, «Sobre a 'recarnavalização' em A Cidade e as Serras
______. “A postura (anti-)dândi e a noção de decadência no conto Civilização, de Eça de Queirós
Michele Dull Sampaio Beraldo Matter. In: O MARRARE – Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ. Rio
de Janeiro: 2007a. n. 8. p. 8-19.
BAUDELAIRE, Charles. O dândi. In: Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. pp. 51-56.

QUEIRÓS, Eça de. A decadência do riso. In: Notas contemporâneas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/d.
______. Civilização. Contos. São Paulo: Martim Claret, 2004.

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